Vesúvio é o nome do bar do Nacib, árabe que se encanta por uma moça do sertão, que revoluciona a culinária de Ilhéus com seus quitutes e temperos inconfundíveis. A quituteira é Gabriela, morena da cor da canela e o cheiro do cravo; junto com Nacib são os personagens principais de “Gabriela, Cravo e Canela”, um dos maiores sucessos de Jorge Amado.

Imagino a tristeza de Jorge se constatasse que mais de meio século depois de ser publicado o romance, o “Vesúvio” está fechado sem prazo para reabrir porque um vírus se desenvolveu a milhares de quilômetros, provavelmente em um mercado de Wuhan, na China, e contaminou todo o planeta, a exceção da Antártida. Essa cena triste felizmente não integrou o imaginário colorido, divertido e sensualizado da obra amadiana.[1]

Jorge Amado escapou dele, mas nós do ano 2020 estamos cercados pelo “Covid-19”. O vírus, que se manifesta como uma gripe forte e as vezes pneumonia, promoveu mudanças mundiais sequer imaginadas pelos mais criativos roteiristas de Hollywood. O impacto sobre a saúde das pessoas e sobre a economia mundial somente será mensurado corretamente no futuro.

Trata-se de um vírus que pode levar o paciente a óbito e que tem ceifado a vida de milhares de pessoas. Ciente disso e das consequências econômicas que já se fazem presentes e que tendem a assumir contornos ainda mais graves, o Presidente da República encaminhou mensagem ao Congresso Nacional, que, em síntese, afirma que o Brasil encontra-se “sob a égide de pandemia internacional ocasionada pela infecção humana pelo coronavírus SARS-CoV-2 (COVID- 19 ), com impactos que transcendem a saúde pública e afetam a economia como um todo e poderão, de acordo com algumas estimativas, levar a uma queda de até dois por cento no Produto Interno Bruto – PIB mundial em 2020.” [2] A Mensagem requer o reconhecimento de estado de calamidade pública de modo a, com fundamento no art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), “obter autorização legislativa para que a União seja dispensada do atingimento dos resultados fiscais e da limitação de empenho prevista na LRF”.

O Congresso Nacional, ciente da gravidade e da urgência da situação, deliberou em tempo recorde, primeiro na Câmara dos Deputados e depois no Senado. A mensagem presidencial tramitou em ambas as Casas como “Decreto Legislativo”, uma das espécies normativas arroladas no art. 59 da Constituição Federal e que serve como instrumento de veiculação de competências exclusiva e privativas de cada uma das Casas ou do Congresso. A votação no Senado, em 20 de março, acolheu uma excepcionalidade: pela primeira vez na história da Câmara Alta um ato normativo foi debatido e votado virtualmente, vale dizer, pela internet e por telefone[3], justamente em razão de os Senadores encontrarem-se em seus Estados, como medida de precaução para evitar o Covid-19.

O Senado fez história e aprovou a mensagem que se transformou no Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, que tem a seguinte ementa: “Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.”  E aqui um registro sobre a riqueza do processo legislativo: uma mensagem presidencial (competência privativa do Chefe do Executivo), que se transforma em Decreto Legislativo (espécie normativa prevista na CF/88 e da competência privativa do Congresso Nacional), de modo a atender a um imperativo de uma Lei Complementar (LC 101/00, lei cuja “reserva material” é definida pela Constituição) e atender a princípio constitucional da responsabilidade fiscal.

Presidiu a sessão de discussão e votação do Decreto Legislativo, o Vice-Presidente do Senado, Senador Anastasia (PSD-MG), em substituição ao Presidente, Senador David Alcolumbre, que se encontrava em repouso em razão de ter contraído o Covid-19. É perfeitamente natural a presidência da sessão (no Senado) ser comandada pelo Vice-Presidente, substituto constitucional e natural do titular. Contudo, no Diário Oficial da União[4] a publicação do ato foi assinado pelo Senador Anastasia, na condição de vice-presidente do Senado no exercício da Presidência. Pode parecer um detalhe, mas não é isso que a Constituição diz. Explico: a Mesa da Câmara e a Mesa do Senado são entidades distintas da Mesa do Congresso Nacional. A Constituição define a Mesa do Congresso Nacional no § 5º do art. 57, que tem a seguinte redação: “A Mesa do Congresso Nacional será presidida pelo Presidente do Senado Federal, e os demais cargos serão exercidos, alternadamente, pelos ocupantes de cargos equivalentes na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.” “Alternadamente” significa que o vice-Presidente da Câmara é o vice-Presidente do Congresso Nacional, na ausência do Presidente do Senado.

O Senado Federal talvez tenha se valido da máxima de Gadamer, tão bem dissecada por um dos maiores hermeneutas do nosso tempo, o Professor Inocêncio Mártires Coelho: “Não há nada a interpretar, nem nada a aprimorar, numa ordem terminante que exija obediência, ou em um enunciado unívoco cujo sentido já esteja estabelecido”. [5]

Efetivamente o “enunciado unívoco” de Gadamer não se aplica ao caso. A propósito, essa discussão não é meramente acadêmica. Ela já foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal no liminar deste século. Uma semana após o ataque terrorista do 11 de setembro, o então Presidente do Senador, Jader Barbalho (MDB-PA), renunciou ao mandato de Presidente da Mesa em razão de denúncias envolvendo supostos desvios de recursos do Banco do Estado do Pará (Banpará).[6] Antes da renúncia e com Jáder previamente licenciado, o vice-Presidente Edson Lobão (PFL-MA) assume interinamente a Presidência do Senado e convoca reunião conjunta do Congresso Nacional. A Câmara dos Deputados se rebela por entender que a presidência do Congresso deveria ser comandada pelo vice-Presidente da Câmara, Deputado Efraim Moraes (PFL-PB). O Deputado Almir Sá (PPB-RR) impetra mandado de segurança perante o STF que ao fim estabelece, por decisão unânime e relatoria do Ministro Nélson Jobim, que a presidência do Congresso Nacional deve ser exercida pelo primeiro Vice-Presidente da Câmara:

Prosseguindo no exame do mérito do mandado de segurança acima mencionado, o Tribunal, por unanimidade, decidiu que, nas hipóteses de ausência eventual ou afastamento por licença do Presidente do Senado Federal, cabe ao 1º Vice-Presidente da Mesa do Congresso Nacional convocar e presidir a sessão conjunta do Congresso Nacional. Com esse entendimento, o Tribunal deferiu o mandado de segurança para cassar a convocação do Congresso Nacional para sessão conjunta, feita pelo 1º Vice-Presidente do Senado Federal, na condição de Presidente Interino do Senado Federal. Considerou-se que a Mesa do Congresso Nacional, criada pela CF/88, é distinta das Mesas da Câmara e do Senado, de modo que o Presidente interino do Senado Federal não pode presidir as sessões do Congresso Nacional, pois sequer é integrante da Mesa do Congresso Nacional, devendo a substituição ser feita pelos membros desta, nos termos do art. 57, § 5º. [7]

Ora, se são distintas as mesas, se a Constituição Federal é clara nesse sentido, e se o STF assim decidiu, por qual razão o Decreto Legislativo que estabeleceu o estado de calamidade em razão do COVID-19 foi assinado pelo Vice-Presidente do Senado, Senador Anastasia[8], e não pelo primeiro-Vice-Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Marcos Pereira (REP-SP)?  A, por assim dizer, redação introdutória do próprio Decreto Legislativo nº 6/2020, parece esclarecer: “Faço saber que o Congresso Nacional aprovou, e eu, Antonio Anastasia, Primeiro Vice-Presidente do Senado Federal, no exercício da Presidência, nos termos do parágrafo único do art. 52 do Regimento Comum e do inciso XXVIII do art. 48 do Regimento Interno do Senado Federal, promulgo o seguinte Decreto Legislativo.”

Ambos os artigos, 52 do Regimento Comum e inciso XXVIII do art. 48 do Regimento Interno do Senado, atribuem ao Presidente do Senado a competência para editar “Decreto Legislativo”. Entretanto, trata-se, a todas as luzes, de um ato do Congresso Nacional, por tudo o que já se demonstrou e pela própria redação acima transcrita. Sendo ato do Congresso Nacional a competência é do seu Presidente, vale dizer, do Presidente da Mesa do Senado. Na sua ausência, conforme estabelece o art. 57, § 5º da Constituição Federal, a autoridade que deve exercer a presidência é o Vice-Presidente da Câmara, entendimento consagrado pelo STF no MS 24.041-DF.

A essa altura parece apropriado invocar uma decisão por demais conhecida proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1803:

A Constituição ou é uma lei superior e predominante, e lei imutável pelas formas ordinárias; ou está no mesmo nível juntamente com as resoluções ordinárias da legislatura e, como as outras resoluções, é mutável quando a legislatura houver por bem modificá-la.

Se é verdadeira a primeira parte do dilema, então não é lei a resolução legislativa incompatível com a Constituição; se a segunda parte é verdadeira, então as Constituições escritas são absurdas tentativas do povo para delimitar um poder por sua natureza ilimitável.

Certamente, todos quantos fabricaram Constituições escritas consideraram tais instrumentos como a lei fundamental e predominante da nação e, consequentemente, a teoria de todo o governo, organizado por uma Constituição escrita, deve ser que é nula toda a resolução legislativa com ela incompatível […]

Assim, se uma lei está em oposição com a Constituição; se aplicadas ambas a um caso particular, o tribunal se vê na contingência de decidir a questão em conformidade da lei, desrespeitando a Constituição, ou consoante a Constituição, desrespeitando a lei; o tribunal deverá determinar qual destas regras em conflito regerá o caso. Esta é a verdadeira essência da função judicial. [9]

Ao declarar a inconstitucionalidade parcial do Judiciary Act of 1789 – é disso que trata o caso Marbury v. Madison  –   John Marshall fincava as bases definitivas do que há de mais fundamental no Direito, a aderência ao princípio da hierarquia das normas e da superioridade da Constituição. Pelo seu ineditismo e pelas circunstâncias em que foi proferida Marshall foi alçado ao panteão dos grandes norte-americanos, de modo que acertada a definição de James Bradley Thaeyr no sentido de que no Direito Constitucional Marshall era o “preeminente − primeiro, sem nenhum segundo” (prominent − first, with no one second).[10]

Se o Congresso Nacional quiser mesmo, nesse caso específico, homenagear a Constituição Federal, basta reeditar o Decreto Legislativo, agora com a assinatura do primeiro Vice-Presidente da Câmara, único que pode fazê-lo enquanto perdurar o afastamento do Presidente Davi Alcolumbre.

Pode parecer uma filigrana jurídica, mas não é. A obediência à Constituição Federal e ao entendimento do seu Guardião, o Supremo Tribunal Federal, são expressões de um país civilizado que professa irrestrito respeito à rule of law.

Autor: João Carlos Souto, Presidente, idealizador e fundador do Instituto Brasil – Estados Unidos de Direito Comprado (IBEC-USBCLI), Professor de Direito Constitucional, Mestre e Doutorando em Direito Público, Procurador da Fazenda Nacional.

Referências Bibliográficas

AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela. Rio de Janeiro: Record, 80ª edição, 1999.

COELHO, Inocêncio Mártires. Da Hermenêutica Filosófica à Hermenêutica Jurídica, Fragmentos. São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 2015

Decreto Legislativo nº 6, de 20.03.2020. Diário Oficial da União. 20.03.2020, Edição: 55-C | Seção: 1 – Extra | Página: 1

Marbury v. Madison 5. U.S. 137 (Crunch) – 1803. (1803).

Mensagem Presidencial nº 93, de 18.03.93.

MS 24.041-DF, rel. Min. Nelson Jobim, 29.8.2001. (MS-24041). Informativo STF, nº 239, 27 a 31 de agosto de 2001.

Regimento Interno do Senado Federal (Resolução nº 93, de 1970)

Regimento Comum do Congresso Nacional (Resolução nº 1, de 1970

SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais Decisões. São Paulo: Gen/Atlas, 3ª ed., 2019.


[1]. Se alguém ainda não leu “Gabriela, Cravo e Canela” e tiver dúvidas da importância do Bar do Nacib, a passagem que se segue, um diálogo entre o Coronel Manuel das Onças e o russo Jacob, certamente a afastará:

“-  Porque amanhã é o nosso jantar de comemoração e o senhor é meu convidado. Um jantar de primeira, com o Coronel Ramiro Bastos, os intendentes, o daqui e o de Itabuna, o juiz de direito, e o de Itabuna também, Mundinho Falcão, tudo gente de primeira…O gerente do Banco do Brasil… Uma festa de arromba!

– Quem sou eu, Jacob, para essas lordezas… Vivo no meu canto.

– Faço questão de sua presença. É no Bar Vesúvio, o de Nacib.”

AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela. Rio de Janeiro: Record, 80ª edição, 1999, p. 15.

[2]. Mensagem Presidencial nº 93, de 18.03.93.

[3]. A Senadora Kátia Abreu (PDT-TO) votou por telefone, em deslocamento de Brasília para o seu Estado, Tocantins.

[4]. Diário Oficial da União. 20.03.2020, Edição: 55-C | Seção: 1 – Extra | Página: 1

[5]. COELHO, Inocêncio Mártires. Da Hermenêutica Filosófica à Hermenêutica Jurídica, Fragmentos. São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 2015, p. 171.

[6]. Tudo se originou em uma briga política no Senado pela sucessão de Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) à Presidência da Mesa. ACM havia exercido dois mandatos seguidos e Jáder Barbalho era o candidato com mais chance de sucedê-lo. ACM não admitia essa hipótese. Essa dissenção culminou com a renúncia de ambos (ACM e Jáder), em espaço de meses. ACM renunciou em maio de 2001, em razão da violação do sigilo do painel de votação do Senado, Jáder, que conseguira se eleger Presidente, renunciou à Presidência do Senado em 18 de setembro de 2001, e ao mandato dias depois. A história do Senado jamais registrara duas renúncias seguidas de dois ex-presidentes da Casa.

[7]MS 24.041-DF, rel. Min. Nelson Jobim, 29.8.2001. (MS-24041). Informativo STF, nº 239, 27 a 31 de agosto de 2001.

[8]. O Senador Anastasia é jurista, Mestre em Direito e leitor de “Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais Decisões” (Atlas/Gen, 3ª edição, 2019), mas mesmo grandes juristas como ele podem laborar, por equívoco, em inconstitucionalidade.

[9]Marbury v. Madison 5. U.S. 137 (Crunch) – 1803. (1803).

[10]. SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais Decisões. São Paulo: Gen/Atlas, 3ª ed., 2019, p. 106.